21 de set. de 2016

A história da Praça Saenz Peña: a formação do primeiro subcentro de elite carioca

Vista aérea da Praça Saenz Peña, em 1940: primeiro subcentro carioca.
Fonte: "O Rio visto pelo alto", de Patrícia Pamplona - encontrado em Alberto de Sampaio.

A declaração é objetiva, clara e com embasamento científico: a Praça Saenz Peña é o primeiro subcentro a surgir no Rio de Janeiro, e o segundo a emergir no Brasil (o primeiro foi o do Brás, em São Paulo). Mais do que isso, a Praça Saenz Peña é o único caso no país em que um subcentro voltado para as camadas de alta renda surgiu antes que os subcentros populares. Tais afirmações são do arquiteto e urbanista Flávio Villaça, professor da Universidade de São Paulo (USP), autor do clássico livro Espaço intra-urbano no Brasil (Studio Nobel/FAPESP, 1998). Nesta obra, Villaça discute como se deu a produção do espaço urbano em seis metrópoles brasileiras, mostrando as “forças” capitalistas existentes por trás do mar de prédios, casas, praças, lojas, serviços, funções e usos da solo que faz parte do nosso cotidiano.

Espaço intra-urbano no Brasil (1998)
Neste livro, Villaça dedica importantes considerações à Tijuca por ser um dos bairros cuja urbanização é das mais antigas do Rio e, também, por ter sido um bairro pioneiro de “elites” na cidade. Inclusive, são as referências desse passado nobre – e, portanto, visto como digno de status – o tempero que rege muito dos discursos sobre o “orgulho tijucano”. Além disso, a memória afetiva é também um elemento crucial da representação da Tijuca no imaginário coletivo, especialmente quando falamos da Praça Saenz Peña. Muitos textos, livros e artigos se referem à praça como um lugar de cinemas e glamour nos anos ditos “dourados”, mas sem elucidar as razões sociais, políticas e econômicas que ascenderam a Saenz Peña em lugar com este perfil.

É este aspecto que pretendo dissertar nesta série de publicações sobre a formação, a evolução e a decadência simbólica da Praça Saenz Peña como subcentro de “ricos”, a começar por agora.

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Para Villaça, o subcentro é uma aglomeração diversificada e equilibrada de comércio e serviços. Ele é uma réplica em tamanho menor do centro principal – no caso do Rio de Janeiro, o nosso Centro –, “com o qual concorre em parte sem, entretanto, a ele se igualar”. O subcentro apresenta esses requisitos de comércios e serviços para apenas uma parte da cidade, enquanto o centro principal é referência para toda a metrópole. Os primeiros subcentros cariocas surgiram nos anos 1930 em bairros caracterizados, de modo predominante, pela função residencial. Com o desenvolvimento do subcentro, o cenário de bairros como o da Tijuca, de Copacabana, do Méier e de Madureira foi sendo transformado consoante a chegada de lojas comerciais, consultórios, bancos, cinemas, com o objetivo de atender à população residente/visitante no local e nas proximidades. Segundo Villaça, a partir de tais serviços, esses bairros passaram a representar um papel complementar de “centro de atividades”, tornando-se referência como polos terciários de importância local.

Neste sentido, cabe constatar que a formação dos subcentros também esteve muito associada ao desenvolvimento e à consolidação da expansão urbana da cidade em determinados pontos da Zona Sul e da Zona Norte. Isto porque, até meados do século XX, o Centro era o único local de serviços – lugar, por excelência, para onde se deslocava o grosso da população quando precisava resolver pendências ou realizar determinadas compras. A expressão carioca “ir à cidade”, como sinônimo de ir ao Centro, reflete consideravelmente essa posição do local como antiga zona de convergência, mostrando, retoricamente, a condição predominantemente residencial dos bairros fora dali.

Praça Saenz Peña, em 1960

Entretanto, Flávio Villaça pontua duas questões importantes sobre a apropriação do espaço do Centro e a respeito da produção dos subcentros. A primeira delas é que, na primeira metade do século XX, o Centro era um local majoritariamente ocupado pelas classes de alta renda, tanto para fins de trabalho como de lazer. Como justificativa a essa informação, basta recordarmos a Reforma Pereira Passos, realizada na década de 1910. Como todos sabemos, a Reforma não se tratou de uma intervenção urbanística voltada para abrigar as atividades e lazeres das classes populares no Centro. Muito pelo contrário; os pobres, em seus cortiços, foram expulsos de lá para os subúrbios, justamente porque as elites reivindicaram aquele espaço como de exclusividade delas.

Logo, o centro principal sempre foi, por vocação, um lugar construído pelas elites para as elites, abrindo brechas para a circulação da população mais desfavorecida a partir do inevitável oferecimento de postos de trabalho subalternos para as classes (des)qualificadas como tais. E, com isso, é claro que algumas ruas do Centro foram desvalorizadas, especialmente aquelas próximas à Central do Brasil e ao ponto final dos ônibus oriundos da periferia.

Mas, de um modo geral, o Centro sempre foi, por excelência, o lugar do poder e, portanto, das elites. Devido a essa razão, em muitas metrópoles brasileiras o surgimento dos subcentros veio para atender à demanda de consumo das classes populares reprimidas, pelo “mercado” - em suas diferentes facetas -, de consumir no centro principal. Neste entendimento espacial, estes subcentros viriam a ser tratados, assim, como pequenos centros situados em bairros populares, sobretudo periféricos. Por outro lado, aqui no Rio a lógica de formação dos primeiros subcentros serviu, inicialmente, para atender outro público e, consequentemente, a outros interesses.

Com base nisso, a segunda questão importante apontada pelo autor é o fato de que as classes de alta renda no Brasil (ou seja, a elite) são as maiores responsáveis pela formação das centralidades. Em outras palavras, significa dizer que a população de maior poder aquisitivo exige – e reivindica – estar próxima ao Centro, no sentido de estar próxima, na verdade, do comércio e dos serviços de que todos necessitamos para a nossa reprodução social. Tratando-se de uma metrópole rica como o Rio – então Distrito Federal –, a expansão urbana das elites atingiu raios de distância, em relação ao Centro, bem maiores do que em outras metrópoles.


Mesblinha - "O magazine da Tijuca", anos 1950.


Programação dos cinemas da Saenz Peña.
Fonte: Conrado Leiloeiros
O que é importante frisar aqui é que, concomitantemente à expansão espacial das elites, ocorreu, do mesmo modo, a expansão do tipo de comércio e de serviços típicos que só existiam no Centro para esses bairros em que elas se instalaram. Tudo isto graças à força política e ao poder econômico dessa classe em reclamar sua proximidade ao “centro”, enquanto conjunto de comércio e serviços. Um exemplo contemporâneo deste tipo de processo é o da Barra da Tijuca, que, de 1980 para cá, passou de posição de zona-quase-rural para a de importante centralidade na hierarquia socioespacial carioca.

Neste sentido é que Villaça diz ter surgido no Rio de Janeiro o primeiro subcentro das elites, lá nos anos de 1930: a Praça Saenz Peña. Desde o século XIX, a Tijuca já estava consolidada como bairro urbano e nobre. Com o crescimento espacial e econômico da cidade, nas primeiras décadas do século XX, essa sua condição de bairro nobre (e já consolidado em termos urbanos) foi crucial para que se viabilizasse, espontaneamente, a formação do que seria o primeiro subcentro carioca.

Villaça diz que os subcentros de Copacabana, Méier e Madureira se consolidaram na década seguinte, em 1940, mas voltados para atender a fins diferentes. No caso de Copacabana, por exemplo, contribuiu sobremaneira o turismo, visto que muitos serviços implantados por lá desde o início do século passado tinham os turistas como público-alvo. Já o Méier e Madureira se encaixariam na teoria dos subcentros periféricos voltados para responder à demanda de consumo das classes populares nos subúrbios em que residiam. 

Revista da Semana, 1944

Neste entendimento, Villaça afirma que “a Praça Saens Peña foi o primeiro subcentro voltado para as camadas sociais médias e acima da média jamais desenvolvido numa metrópole brasileira” (p. 278), precedente à Copacabana. Ao mesmo tempo, vale destacar novamente a grande distinção entre Tijuca e Copacabana em termos do perfil de seus respectivos subcentros. Ambos estavam voltados para a elite, é verdade, mas o da Praça Saenz Peña visava atender um público local, das cercanias da Tijuca, enquanto que o subcentro de Copacabana visava atender à demanda do turismo. Copacabana só se tornou um subcentro mais “completo”, menos especializado como turístico, pouco tempo depois dos anos 1940, quando o próprio bairro – e a Zona Sul oceânica – consolidaram seu processo de desenvolvimento urbano e, sobretudo, sua hegemonia como o novo espaço das elites no Rio.

Mas, como se deu a percepção da Praça Saenz Peña como subcentro? Villaça aponta que um subcentro só começa a aparecer quando se nota a chegada de determinados perfis de serviços inéditos ao lugar, serviços estes capazes de conglomerar público e fluxos econômicos equivalentes ao do Centro – resguardadas as devidas proporções. 

Casa Granado, na Conde de Bonfim com Almirante Cochrane: loja pioneira na
formação do subcentro tijucano.


Anúncio da Importadora Tijuca. O Globo (1959).
Na Praça Saenz Peña, o estopim de sua ascensão como primeiro subcentro da cidade – e subcentro para “ricos” – se deve à abertura da primeira filial de uma loja do Centro – então, nobre – no centro de um bairro residencial. Neste caso, estamos falando da Casa Granado, perfumaria instalada na Rua Primeiro de Março (antiga Rua Direita) desde 1870. Aqui na Tijuca, a Granado foi inaugurada em 1928 em prédio tombado situado na esquina da Rua Conde de Bonfim com Rua Almirante Cochrane. Nas palavras de Villaça, naquela época, “as perfumarias eram lojas importantes e essa filial era um indicio significativo da importância do centro da Tijuca” (p. 296).

Outros exemplos apontados por Villaça são os das filiais das seguintes lojas: Formosinho, que vendia artigos de vestuário e que contava com dois estabelecimentos no Centro; a loja Drago, que vendia móveis; o Jarro de Cristal, que vendia louças e cristais; a Confeitaria Tijuca (da qual pretendo falar em outra publicação); a Ferreira, que vendia ferragens, além de várias lojas de calçados e tecidos; e a Importadora Tijuca, uma loja que vendia automóveis situado no número 426 da Conde de Bonfim, onde hoje se localiza uma filial da rede de eletrodomésticos Ponto Frio. 

Mas, o principal mesmo eram os cinemas (que também falarei em outra oportunidade). No início de sua vocação como subcentro, a Praça Saenz Peña contou com cinco grandes cinemas: o Olinda, o Tijuquinha, o Metro, o América e o Carioca. Comparando a potência da Saenz Peña com a de Copacabana, Villaça sublinha que, em 1940, Copacabana inteira tinha apenas três cinemas. Se levarmos em conta a quantidade total de cinemas na Tijuca - isto é, incluindo as salas para além da Saenz Peña -, esse número pode alcançar patamares ainda mais elevados.

Foram essas as razões que fizeram emergir o subcentro da Praça Saenz Peña, o qual Villaça assegura como “o único caso no país em que um subcentro voltado para as camadas de alta renda surgiu antes que os subcentros populares” (p. 297). A evolução deste subcentro nas décadas consecutivas, incluindo, também, a tão chamada “decadência” da Praça Saenz Peña, será discutida nas próximas publicações.
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