1 de out. de 2017

"Tijuca- bairro sem mistério" (Revista O Cruzeiro, 24 jul. 1943)

Reportagem publicada na Revista O Cruzeiro realiza uma leitura poética da Tijuca dos anos 1940

O que faz da Tijuca um bairro sem mistério? Para o repórter Joel Silveira, a explicação seria a de que a Tijuca não usa "máscaras": um lugar cujo "passado é limpo" e seu "presente é claro e sem discussões". Um bairro sério, de vida digna, de pessoas que trabalham muito a vida inteira para desfrutar honestamente dos seus próprios rendimentos no futuro. Mais do que isso, uma Tijuca que, mesmo na mudança mais insólita de sua paisagem, de arranha-céus e andaimes perdidos entre as chácaras oitocentistas, a Tijuca que se "esvaía no turbilhão!", conservava o que havia de melhor em sua essência. Uma essência natural, uivada dos ventos da floresta.

Intitulada "Tijuca - bairro sem mistério", a reportagem que compartilho hoje com os leitores de O PASSEADOR TIJUCANO foi publicada em 24 julho de 1943 na extinta Revista O Cruzeiro. Este texto é um importante exemplar sobre o lugar ocupado pela Tijuca no imaginário do Rio de Janeiro nos anos 1940 e o modo como as sociabilidades daqui se desenlaçavam no nosso cotidiano. Vale destacar que se trata de uma leitura bastante segmentada sobre o dia a dia da elite local, em suas domingueiras no Tijuca Tennis Club muito bem recepcionadas pelo doutor Heitor Beltrão, presidente do clube e figura ilustre do bairro.

A perspectiva dominante é tão marcada nesse texto que a justificativa dada pelo repórter sobre a presença incômoda do Morro do Salgueiro no bairro é contemporizada pela relação separatista de que o Salgueiro estaria para a Tijuca, assim como Madureira estaria para Copacabana. Ou seja, dois mundos antagônicos e socialmente distantes, independentes. E vai além, sugerindo um discurso remocionista que, se não fosse pelo ano de 1943 datado nas páginas da revista, poderíamos facilmente considerá-lo contemporâneo aos grupos reacionários de hoje: "Tirem o Salgueiro da Tijuca, asfaltem o seu lugar vazio, façam dele uma praça - e a Tijuca continuará como sempre, a mesma família numerosa, os mesmos quadros na sala da frente, as mesmas varandas e os mesmos canários".

De mais a mais, é muito interessante observar as imagens publicadas nas páginas de O Cruzeiro. Muitas delas exibem paisagens inéditas, tais como as do burburinho à porta da emblemática Confeitaria Tijuca (onde hoje se localiza as Lojas Americanas da Praça Saenz Peña) e o passeio de estudantes à nascente do Rio Trapicheiros, mais especificamente no alto da Rua Sabóia Lima, onde hoje está a Praça Hans Klussmann, aquela dos bichinhos.


Revista O Cruzeiro, 24 jul. 1943

Tijuca- bairro sem mistério

Reportagem de Joel Silveira 



A Tijuca é assim como uma velha família mineira: tudo no seu passado é limpo, tudo no presente é claro e sem discussões. Os homens ganham tranquila e honestamente a vida. Há os mesmos retratos de anos atrás na sala de visitas, a mesma cadeira de balanço de jacarandá, onde avós de ontem repousaram e onde os netos de hoje brincam de cavalo.

Surgiram diversas invenções. Os homens não mandam mais bilhetes nem telegramas: falam pelo telefone. As mulheres encurtaram os vestidos. Agora, as mocinhas podem andar a sós, apenas acompanhadas pelos namorados. Há muita luz de noite, os cinemas são coloridos e, aqui e ali, há qualquer arranha-céu ousado, perdido de encontro à paisagem como uma coluna de cimento.

É tolice a gente olhar dos lados, ver o Salgueiro à nossa esquerda, ver as robustas montanhas à nossa frente, e pensar que tudo aquilo são mistérios do Senhor. Não há mistérios na Tijuca, como não há mistérios numa família uniforme, uma família que nunca teve nada de excepcional, apenas uma coleção de cavalheiros e senhoras domésticos. As montanhas podem ter seus bosques, suas cascatas - mas são bosques que nos convidam e nos afagam, como abraços. As cascatas despencam puras e cristalinas, inofensivas cascatas sem pororocas, que estão ali por enfeite e, principalmente, para servir de fundo aos retratos que a gente costuma mandar para o Norte e para as pessoas queridas de Pati do Alferes.



Na Praça Saenz Peña erigiu-se o bairro cinematográfico. Nada menos de quatro luxuosos cinemas foram construídos e possuem grande frequência. Não obstante, a Praça Saenz Peña conservou até hoje, no centro do jardim, o seu interessante guignol, encanto da gurizada de todas as idades. Aos domingos, de tarde, os bancos ficam cheios e o "drama" desenrola-se no teatrinho, segundo a técnica de rigor. 



Quando o bosque desce todas suas curvas e penetra, de súbito, na planície de baixo, é necessário convir que muita coisa mudou. As ruas estão asfaltadas, são agora estradas negras com prédios de apartamentos espremendo-se em chácaras entulhadas de crotons. Mares de luzes salpicam as portas dos cinemas, onde louras fabulosas e inacessíveis se inutilizam nos ditosos braços dos moços simpáticos. As ruas são de sombras e da tranqulidade, mas desembarcaram ali no rio Haddock Lobo ou no rio Conde de Bonfim, rios medonhos, onde os barulhos, os gritos e os automóveis nadam o dia inteiro, como peixes.

Aquilo é a presença de alguma coisa que veio lá de baixo. Uma coisa que saiu de muito longe, passou por entre o Pão de Açúcar e as montanhas de Niterói, encheu a cidade, se espraiou como uma onda. É o caminho do tempo. Posso imaginar a cara daquela chácara, perdida numa floresta, quando o primeiro alicerce suspendeu os andaimes até lá em cima, até o décimo. É como se alguma coisa de muito sólido houvesse desabado. Velhos funcionários públicos, morosos e flácidos com gatos, terão murmurado de suas varandas:

 Lá se vai a Tijuca no turbilhão!

"A calçada das confeitarias elegantes depois das 10 horas da noite", dizia a revista


COLCHA DE RETALHOS

Mas a verdade é que a Tijuca não se foi. Os edifícios se multiplicaram, o rio Haddock Lobo se encheu de mais peixe e o rio Conde de Bonfim é um oceano vertical. Mas a Tijuca não se perdeu no turbilhão.

Agora nós vemos os arranha-céus, vemos as mocinhas dansando nas matinês e nas matinais do Tijuca Tennis Clube. São coisas que estão deante de nós, coisas que não poderemos deixar de ver. Mas nada ali morreu. Presença maior, mais definitiva, presença total continua a ser a das chácaras, dos crotons, dos funcionários e das varandas. A Tijuca, com asfalto, telefone, gaz neon, mobílias coloridas nos terraços, ainda é o que sempre será: uma numerosa família onde todos se conhecem e todos se estimam. Vejam o sr. Heitor Beltrão brincar com as moças e os rapazes de seu clube: ele não fala com desconhecidos. Aquela é gente de uma só família: o rapaz moreno que flerta com a loura, a adolescente que mergulhou n'água como um peixe elástico, o rapazinho que começa a imaginar o seu primeiro bigode. É gente ali da Tijuca, gente das montanhas, gente dos dois grandes rios. Peguem Heitor Beltrão e metam ele em Copacabana. Ou mesmo no Flamengo, tomando banho de sol e presidindo as festas do clube local. Não dará nada da mesma que maneira que um paulista ficará sem solução numa feira livre do nordeste.

É coisa apressada a gente pensar que a alegria da praça Saenz Peña é a mesma da praça Serzedelo Correia, em Copacabana. Este Rio é muito grande, grande como um mundo, e nós o chamamos, de um modo geral e simplista, de "alegria carioca", não passa de uma imensa colcha de retalhos, muito colorida e muito desigual. Alegrias, anedotas e tristezas descem de todos os recantos, dos bairros e dos subúrbios, e só se esfarelam e se misturam na cidade. Por causa disso é que a rua Dias da Cruz tem mais personalidade do que a Avenida Rio Branco.

A CAPITAL É COMO UM DOMINGO

Agora a Tijuca tem a sua capital: é a praça Saenz Peña. Ali está o resumo da cidade chamada Tijuca. Suas retretas muito mineiras e domésticas, seus cinemas muito bonitos, porque a Tijuca quer avisar a todos que é um lugar que não precisa da cidade para suas necessidades. Para a capital chega o que há de melhor: os melhores vestidos, os melhores sorrisos, os melhores ternos, as melhores alegrias e os melhores penteados. A capital é como um domingo, pois é sabido de todos que o domingo é a capital da semana. A Tijuca pode se orgulhar disso: ela possui o seu domingo total. Isso é muito importante. O domingo em Copacabana, por exemplo, se resume num pedaço de tempo que vai das oito da manhã a uma da tarde: então os homens e as mulheres se estiram na praia, queimam os corpos debaixo do sol, as senhoritas mostram seus "maillots" e os rapazes exibem seus músculos. Chega a tarde e Copacabana se inutiliza. À noite, é a fuga para os cinemas da cidade e para os cassinos. Os bandos, que vagueiam pelos bars, é fauna exótica, que chegou fugida de outros cantos.

Praça Saenz Peña, em primeiro plano, e o Metro Tijuca, em segundo: bairro cinematográfico.

O domingo tijucano é um domingo cheio. O clube do sr. Heitor Beltrão escancara suas portas logo cedo. Há gente na piscina, nos campos gramados, nos salões de bailes. Há gente nas varandas lendo os matutinos, e cada varanda, cada apartamento estão agora repletos dos telegramas aflitos da guerra e da literatura, dos suplementos cada vez mais fraquinhos. Ninguém desce para a cidade, como uma fuga.


No entretanto, a Tijuca conservou o seu aspecto tradicional, e o clima do "bairro" em todo o seu encanto. O sentido do clube existe com muita intensidade. Congrega as famílias das vizinhanças nas suas festas, onde a juventude pratica esportes e se inicia na vida social. A piscina do Tijuca Tennis Clube possue sempre grande movimento e seus nadadores, bem exercitados por instrutores, brilham nos campeonatos da cidade.



Há retreta à tarde, há retreta à noite. E há os cinemas, ali mesmo, cada porta como um arco-íris, iluminando a capital Saenz Peña. Cinelândia, centro de cidade, tudo ali misturado. Aquilo não é somente um bairro, não tem nada de subúrbio. É uma cidade diferente, com uma personalidade de ferro, que resistiu ao asfalto, ao chicle, à praia e a Hollywood. E ainda nisso ela é coerente, pois que cada família que se presa tem o seu orgulho próprio, um orgulho particular que se repete e se pormenoriza para as visitas. O orgulho da família é este, que ela diz em voz alta:

 Vejam bem que eu não uso máscara.


O SALGUEIRO É UMA EXCEÇÃO

Poderão dizer que o Salgueiro é uma exceção. Mas é uma exceção porque se trata de um morro. Morro é coisa que não se identifica com coisa alguma. Fica sempre boiando dentro da paisagem, assim como uma gota de mercúrio dentro de uma peça d'água. Os morros são uma paisagem espalhada. Eles estão aqui e ali, na praia e no subúrbio, nos bairros e na própria cidade. Mas vivem sozinhos, com sua vida próprio, e o Salgueiro está para a Tijuca como Copacabana está para Madureira.

Lá no alto, quase que ele passa despercebido. Tirem o Salgueiro da Tijuca, asfaltem o seu lugar vazio, façam dele uma praça - e a Tijuca continuará como sempre, a mesma família numerosa, os mesmos quadros na sala da frente, as mesmas varandas e os mesmos canários. Tudo sem mistério, tudo muito simples, nem meandros, longe do turbilhão.

Debalde quaisquer garotas, mais impulsivas, tingirão seus corpos com o sol artificial do iodo. Continuarão sendo tijucanas, porque com elas morará sempre essa tranquilidade que não é artigo fabricado, é artigo que nasceu com a Tijuca, que impregna, ali, suas montanhas e sua gente.

"Na hora do almoço, os terrenos sombreados da represa do trapicheiro ficam cheios de vozes risos".

ISSO É BONITO

Tem razão a mocinha de nome Edith quando me diz:

 Não precisamos ir à cidade. Fazer lá o quê? O que fazemos lá, podemos fazer aqui.

Tudo: compras, passeios, cinemas, flertes, retretas - e tudo dentro daquele ar acomodado, daquele conforto de chácara, tudo muito natural e muito humano, nada "ersatz". Invariavelmente, os namoros tijucanos de mais de seis meses acabarão em casamento. É fatal. Vocês já pensaram no formidável depoimento que, sobre o assunto, nos poderia dar o dr. Heitor Beltrão? Deante do seu desvelo e do seu entusiasmo, de sua voz de bom orador e de sua inteligência objetiva de jornalista, já desfilaram gerações e gerações de tijucanos. Ele poderia nos dizer, por exemplo, que muito namoro inocente, entre uma matinal e um banho de piscina, acabou rendendo muito e se transformou, mais tarde, em união feliz. A figura não inspira aventuras. O tipo da senhorita fatal, entre aquelas montanhas e aqueles jardins de feira de amostra, não encontra ar para respirar nem sombras para agir. A Tijuca é séria, muito digna, como esses senhores que trabalhavam muito, a vida inteira, e que hoje vivem, honestamente, dos seus rendimentos. E isso é muito bonito.

2 de jul. de 2017

Rua Coronel Aristarco Pessoa & Rua Rocha Miranda

Panorama da Rua Rocha Miranda, em primeiro plano, e da Rua Coronel Aristarco Pessoa, em segundo

Já se vão pouco mais de seis décadas desde que uma das mais simpáticas ruas da Usina, a Itabira, passava a ser oficialmente denominada como Coronel Aristarco Pessoa em tributo àquele comandante do corpo de bombeiros do antigo Distrito Federal brasileiro. O ano era 1951; mês, agosto (1).

Desde então, muita água rolou.

A Usina perdeu representatividade na cartografia e no imaginário carioca, salvo pela sua presença nos letreiros de alguns ônibus que circulam pelo Rio. Já não é mais caminho dos bondes que subiam o Alto da Boa Vista, embora ainda seja possível avistar os seus antigos trilhos interrompidos por algum ou outro pedaço de calçada colocado por cima. Já não tem mais a grande elite como classe majoritária, mas as belíssimas residências construídas por esses nobres e burgueses de outrora continuam por lá, paradinhas no tempo, imponentes.

Para quem não conhece, a Coronel Aristarco Pessoa é uma ruazinha estritamente residencial localizada próxima ao Largo da Usina. Os tradicionais fuscas-táxis, que só existem na Usina (note bem: em todo o Rio de Janeiro, eles permaneceram apenas na Usina!), fazem ponto justo ali, na esquina desta com a Avenida Edson Passos. As mototáxis também marcam presença no local e, junto a esses fusquinhas, representam uma opção alternativa e econômica para quem não pretende subir a pé as grandes ladeiras da região. É preciso fôlego. A Rua Rocha Miranda, transversal e vizinha à Rua Coronel Aristarco Pessoa, que o diga. Ambas as ruas se contrastam nestes termos: enquanto naquela impera a ladeira, a outra se apresenta por meio de um suave declive, dando as boas-vindas a quem lhe acessa pelo Largo da Usina.

Vista exuberante para o Maciço da Tijuca

O fusca-táxi da Usina: patrimônio carioca

Bucolismo à Rua Coronel Aristarco Pessoa.

A principal qualidade desta região, eu diria, é a quantidade de verde. Não é preciso ir ao topo da Rua Rocha Miranda para se desfrutar de uma vista tímida, mas espetacular das montanhas da Usina. Para quem não se simpatiza com as favelas, elas não aparecem no cenário – apenas muitas árvores, rochas, árvores, árvores e mais árvores estão enquadrados naquele panorama, portanto, belíssimo da Zona Norte. Em épocas de maior umidade e de baixas temperaturas, chega-se a ver até mesmo o deslize da água das chuvas escoando pelas rochas. Uma das visões mais emblemáticas, restauradoras e agradáveis deste trecho da Tijuca.

Aqui, abro um rápido parêntese para endossar que o clima bucólico e ligeiramente conservador de ambos os logradouros é exatamente verossímil às impressões de Joel Silveira, repórter da Revista O Cruzeiro (24 jul. 1943), sobre o nosso bairro:

"A Tijuca é assim como uma velha família mineira: tudo no seu passado é limpo, tudo no presente é claro sem discussões. Os homens ganham tranquila e honestamente a vida. Há os mesmos retratos de anos atrás na sala de visitas, a mesma cadeira de balanço de jacarandá, onde avós de ontem repousaram e onde os netos de hoje brincam de cavalo".

Nas ruas Coronel Aristarco Pessoa e Rocha Miranda, o estilo da arquitetura transparece muito bem esse jeito ancião dos confins da Tijuca ainda resistente neste princípio de século XXI. Tem-se, ali, a fisionomia clássica da casa dos avós, cujos filhos e netos devem passar apenas como visitas porque provável e decididamente preferem residir em cantos menos provincianos do que estes. Contudo, há um elemento moderno destoante nesta paisagem tão tradicionalista: um campo de paintball. A entrada sóbria para o campo do Paintball Usina não se compara, entretanto, ao intemperante comportamento das crianças e adolescentes que, efusivos, visitam o local.

Zona estritamente residencial na subida do Alto da Boa Vista

Rua Rocha Miranda

O trecho final da Rua Coronel Aristarco Pessoa

Voltando à Rua Coronel Aristarco Pessoa, dirijo-me ao seu final, que dá para um muro coberto por plantas. Não há saída. Tudo é muito silencioso, exceto pelo ruído mais ou menos intermitente do motor berrante dos fuscas e das mototáxis. E dos entregadores de pizza, também. E em meio a tantas casas, a única construção mais verticalizada e multifamiliar fica ali, no final da rua, o prédio de número 203. O clima de aconchego da vizinhança não se perde com ele; pelo contrário. O jardim que margeia a portaria é de uma simplicidade bela e suficiente para ornar ainda mais toda aquela Mata Atlântica que abraça tanto a rua, como o vale da Usina da Tijuca. Tudo está em aparente equilíbrio.


RUA ROCHA MIRANDA 53: A CASA ZUZU ANGEL

É destaque no local o imóvel situado à Rua Rocha Miranda 53, mais conhecido pela alcunha de “Casa Zuzu Angel”. Original do início do século XX, ele está para a Rua Rocha Miranda assim como o Edifício Cibrasil está para a Rua Professor Lafayette Côrtes, n’outro extremo do bairro da Tijuca. A imponente casa é propriedade da jornalista Hildegard Angel, filha da famosa e mitológica estilista Zuzu Angel, quem leva o nome da iniciativa lançada pela proprietária para transformar o local no futuro Museu da Moda.

A imponente casa da jornalista Hildegard Angel, à Rua Rocha Miranda 53: joia da arquitetura tijucana.

O imóvel possui estilo eclético com sala rococó, salas, banheiros, corredores e cozinha com azulejos de várias épocas e estilos nos quais predomina o art nouveau. Segundo informações institucionais fornecidas pela Casa Zuzu Angel, “seu belíssimo jardim e pátio externo já receberam personalidades da moda como Oscar de la Renta e Hubert de Givenchy”. A casa é uma das tantas joias arquitetônicas da Tijuca e passa por um projeto de restauro desde 2014. Paralelamente, abriga o acervo da falecida estilista e encontros mensais com pesquisadores, profissionais e interessados em compartilhar conhecimento e reflexões sobre pesquisas relacionadas a acervos, memória e patrimônio de moda no Brasil.

Os muitos e místicos rococós: a casa data do final do século XIX

Detalhe dos variados azulejos

De acordo com reportagem veiculada no caderno "Tijuca", de O Globo, em 1989 (18 jul.), Hildegard Angel afirmou ter comprado a casa em mau estado de conservação em meados daquela década e não poupou esforços para remodelá-la. Dentro do imóvel havia pelo menos três grandes vitrais não muito bem preservados, tendo um deles aproximadamente 10 metros quadrados. Com fins de recuperá-los, a jornalista contratou o mesmo restaurador de vitrais que, tempos antes, havia remodelado os vitrais da paróquia Bom Pastor, aqui mesmo no bairro. Na matéria, Hildegard comenta que o vitral "emprestava um ar místico à casa", aspecto que já se percebe na própria fachada pomposa e cheia de elementos religiosos.

A fachada, aliás, por si só já é um deleite para os pedestres que, direto do espaço público, podem contemplar tamanha beleza à espera, um dia, quem sabe, de convite para uma xícara de café. Um dedinho só de café, ali no jardim, junto à quaresmeira, vendo esses vitrais de perto, fotografando cada detalhe, cada centímetro dos azulejos. Um dia, quem sabe, adoraria, não seria muito incômodo, em nome da Tijuca, em prol dela... (Enquanto a casa ainda não se torna aberta ao público, resta-nos conhecê-la - e seu projeto por inteiro - por meio da Astorga Arquitetura e Restauração, encarregada de remodelá-la: https://www.astorgaarquitetura.com/casa-zuzu-angel).

---

(1) Diário de Notícias (O Matutino de Maior Tiragem do Distrito Federal), quarta-feira, 1º ago. 1951, p. 3:

CEL. ARISTARCO PESSOA - No próximo sábado, às 10 horas, serão substituídas as antigas placas da rua Itabira, na Tijuca, há pouco denominada rua Coronel Aristarco Pessoa, numa homenagem da Municipalidade carioca ao antigo comandante do Corpo de Bombeiros. O ato contará com a presença de amigos do antigo comandante, do prefeito João Carlos Vital e do atual dirigente do Corpo de Bombeiros, coronel Sadock de Sá.

29 de jun. de 2017

À Rua Conde de Bonfim 31, uma clínica que "honrava" o bairro da Tijuca

A Tijuca, um dos mais elegantes e populosos bairros do Rio de Janeiro, é quase uma cidade dentro da cidade. Comércio intenso, divertimentos, vida noturna, nada lhe falta. No importante setor médico, pode orgulhar-se de possuir a "Clínica do Dr. Gesteira", a mais bem aparelhada do bairro e uma das melhores de tôda a cidade.

Revista Vida Doméstica, edição 450, setembro 1955

Em setembro de 1955, na edição de número de 450 da extinta Revista Vida Doméstica, um anúncio publicitário inusitado promociona as moderníssimas instalações da Clínica do Doutor G. Gesteira. Situada à Rua Conde de Bonfim 31, junto ao Largo da Segunda-Feira, o referido centro médico tinha como foco "servir à população do bairro da Tijuca", "um dos mais elegantes e populosos bairros do Rio de Janeiro". Para o Doutor Gesteira, a Tijuca, naquela longínqua década de 1950, já podia ser considerada "quase uma cidade dentro da cidade".

Aos nossos olhos deste princípio de século XXI, as imagens do Dr. Gesteira e de suas enfermeiras prestando atendimento aos seus pacientes parecem curiosamente caricatas. Especialmente pelas vestimentas, todas muito associadas ao estereótipo das figuras do médico e da enfermeira. A descrição da moderna aparelhagem de "Raios-X", "Onda-curta", "Ultra-som", "Ultra-violeta", entre outros, endossa a avant-garde dos serviços existentes na Tijuca, um dos bairros mais proeminentes da cidade naquela época.

A localização da Clínica do Dr. Gesteira, em 2017: casa demolida.

É interessante observar o imóvel onde funcionava a clínica. Tratava-se de uma casa tipicamente tijucana instalada em centro de terreno, destas que não se vê mais em seu endereço original. Hoje, a Conde de Bonfim, na altura do Largo da Segunda-Feira, é tomada por prédios em ambos os lados, combinada a uma profusão comercial que decerto multiplicou o número de clínicas e de outros serviços médicos no bairro desde 1955.

Vale destacar, ainda, que o número 31 da Rua Conde de Bonfim aparentemente não existe mais. Originalmente, a Clínica do Dr. Gesteira estaria localizada no terreno dos prédios erguidos sobre a Padaria Santa Marta (número 25) e a tradicional Casa D'Queijos e Frios (número 35, Loja A).

22 de jun. de 2017

Letreiros antigos que resistem no comércio de rua da Tijuca

Memória afetiva para uns, abandono para outros. Na Tijuca, muitos letreiros antigos ainda povoam as fachadas do nosso comércio de rua. Alguns deles já se tornaram de estimação tamanha a simpatia (inconsciente) aos quais muitos tijucanos lhes têm. Para identificar o quão antigo pode ser um desses letreiros, há pistas certeiras: é só observar o estilo das letras que destacam o nome do empreendimento, o material utilizado, o modo como é apresentado o número de telefone, o tipo de iluminação. Número de fax, então, já é redenção na certa. Outros se entregam pelo simples anúncio do gênero de serviço prestado: videolocadoras, minutas e vitaminas, calçados e bolsas para senhoras.

O PASSEADOR TIJUCANO recorreu as principais ruas e procurou listar oito letreiros antigos e emblemáticos do nosso bairro. Quer colaborar com a lista? É só mandar sua contribuição – de preferência, com foto – para pelasruasdatijuca@gmail.com.


1. AO TRANSISTOR DA TIJUCA (Rua São Francisco Xavier 2, Loja E)


Rua São Francisco Xavier 2, Loja E, Largo da Segunda-Feira 


"Ao Transistor da Tijuca" é uma das tantas lojas de material elétrico e utilidades do gênero que existem no bairro. O letreiro antigo já é quase patrimônio gráfico do Largo da Segunda-Feira, onde se situa. Observem que o prefixo do telefone só apresenta três dígitos, dando uma amostra do seu longo tempo de existência. Vale destacar que, no Rio, todos os números de telefonia fixa passaram a ter prefixo de quatro dígitos no dia 30 de junho de 2001, há 16 anos.


2. MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO STA. CAROLINA (Rua Santa Carolina 8)


Rua Santa Carolina 8, Usina

Outro gênero comercial bastante comum aqui na Tijuca é o varejo especializado em materiais de construção. São bazares à moda de outrora, bem diferentes das grandes cadeias como Leroy Merlin ou Casa Show. Na Usina, temos a loja "Materiais de Construção Sta. Carolina", localizada na rua homônima. O letreiro, coitadinho, mal conserva suas letras. Mesmo assim, ainda se pode identificar o derradeiro slogan: "Tudo Para Construção e Pinturas".


3. GURILANDIA LANCHES (Rua Conde de Bonfim 670)

Rua Conde de Bonfim 670, entre Uruguai e Dona Delfina 

Quem se lembra dos tempos em que ir à Disney também podia ser sinônimo de ir à Disneylândia? No caso da Tijuca, o sufixo "lândia", que cheira à naftalina de tão démodé, é utilizado para designar o território da gurizada na Rua Conde de Bonfim 670. Ou melhor: a "Gurilandia Lanches", sem circunflexo. O letreiro do estabelecimento não deixa mentir a idade: ele oferece (ou oferecia) refeições à minuta, pizzas e vitaminas. Em tempos de hambúrguer gourmetizado, o que são mesmo minutas e vitaminas?! De todo modo, eis mais um patrimônio gráfico do nosso bairro!


4. REQUINTE (Rua Conde de Bonfim 668, Loja B)

Rua Conde de Bonfim 668, Loja B, entre Uruguai e Dona Delfina

Nas vizinhanças da "Gurilandia Lanches", jaz o letreiro da antiga boutique "Requinte", no número 668 da Rua Conde de Bonfim. A loja é dos tempos em que se vendia produtos exclusivos para "senhoras", tais como calçados e bolsas. Diferentemente dos demais estabelecimentos listados aqui, a "Requinte" encerrou suas atividades já há um bom tempo (algum leitor sabe quando?), e o melhor - está fechada com portas pantográficas! Mais vintage, impossível. Nossa Tijuca é tradicional até quando não quer.


5. BRASEIRO (Rua Haddock Lobo 123A)

Rua Haddock Lobo 123, Loja A, próximo à Avenida Paulo de Frontin (Fonte: Google)

Oficialmente conhecida por "O Braseiro Armarinho Limitada", a Braseiro Modas - como é comumente chamada - está fincada na Rua Haddock Lobo desde 1966, já nas bandas do Rio Comprido. Segundo o tijucano Felipe Torreira, do blog Pileque, "as roupas estão expostas em cristaleiras muito bonitas, bem altas, pois o pé-direito da casa deve ter seus seis metros. Camisetas furadinhas, camisas sociais, camisolas, meias sociais, calçolas, cintos elegantes e moda íntima em geral enchem as estantes e mostruários". Tim Maia, o cantor, foi freguês em outras épocas. Inveterado letreiro!


6. ELETRÔNICA ROBRUM (Rua José Higino 290)

Rua José Higino 290

Já se foram os tempos em que hordas de tijucanos consumiam ad nauseam as incontáveis videolocadoras existentes no bairro. Com o fim dos cinemas na Praça Saenz Peña, alugar VHS e DVDs tornou-se uma das poucas opções culturais por aqui. Agora, em tempos digitais, as videolocadoras ficam só na saudade ou impressa nos letreiros, como neste da "Eletrônica Robrum", situada à Rua José Higino 290. A placa também entrega a idade pelo anúncio do número de telefone com prefixo de três dígitos e do número de fax. E os pontinhos luminosos que circundam a moldura? Dignos de cenário dos programas da Xuxa, nos anos 1980.


7. BAZAR CASCATA (Rua Conde de Bonfim 927, Loja D)

Rua Conde de Bonfim 927, Loja D, Muda 

Na esquina da Rua da Cascata, o "Bazar Cascata" faz parte da turma de lojas de ferragens, material elétrico e conserto de eletrodomésticos tão comuns na Tijuca. Após a remoção do tradicional letreiro de "O Queijeiro da Muda", arriscaria dizer ser este um dos mais emblemáticos atualmente deste pedacinho da Tijuca.


8. HOTEL TIJUCA (Rua Pareto 63)

Rua Pareto, 63, arredores da Praça Saenz Peña

O "Hotel Tijuca" dispensa apresentações: é um dos mais famosos motéis do tipo custo-benefício do bairro, muito embora ainda há quem encare o "Paretão" como um hotel - pelo menos, na página do Trip Advisor, onde se tecem críticas sobre o serviço prestado. O prédio chega a ser risível de feio, mas o seu letreiro continue firme e forte na paisagem aérea dos arredores da Praça Saenz Peña justo no seu trecho mais decadente, a Rua Pareto. A placa emana ares de far west movie, mas é um desses letreiros que eu estimo sem saber o porquê.

-----------

Quer colaborar com a lista? É só mandar sua contribuição – de preferência, com foto – para pelasruasdatijuca@gmail.com.

17 de jun. de 2017

Rua Dulce, Rua General Marcelino & Rua Professor Lafayette Côrtes

Praça Babilônia, no entroncamento da Rua Dulce e Rua General Marcelino

A Tijuca é reconhecidamente um bairro urbano e caótico, mas que tem o privilégio de ainda resguardar verdadeiros oásis. Quem costuma passar pela Rua Almirante Cochrane e está pouco familiarizado com a cartografia da região, por exemplo, dificilmente poderia imaginar que bem ali se descortina um desses paraísos. O palpite duvidoso se deve à imagem meio esquisita que se tem do acesso para a Rua Dulce, pouco antes do atual Supermercado Guanabara (extinto Walmart). Isto porque se trata de uma rua com cara de viela malcuidada e meio sombria o portal de entrada para uma espécie de cidadela à parte, charmosa e muito, mas muito bucólica.

Esse pequeno paraíso de que lhes falo compreende as ruas Dulce, General Marcelino e Professor Lafayette Côrtes, incrustadas nos fundos do Colégio Militar e coladas à belíssima Pedra da Babilônia. A proximidade desta grande rocha com as residências que loteiam a vizinhança faz deste cantinho da Tijuca uma espécie de Urca na Zona Norte. Principalmente porque toda a arquitetura dali inspira o glamour decadente dos anos dourados que também perfila as edificações daquele bairro da Zona Sul. Os prédios de pouco pavimentos sem elevadores e os muros baixinhos das casas resistem como se os tempos ainda fossem outros. Tudo cheira à vida, temperada por uma explícita ambiência familiar que tanto particulariza as ruas residenciais da Tijuca.

Para começar, só há uma entrada e uma saída: a primeira se dá pela Almirante Cochrane e a última pela Rua São Francisco Xavier. Logo, quem entra pelo sentido do tráfego de veículos, após o trecho horripilante de aproximadamente 100 metros confrontado por duas grandes fachadas inativas, depara com a primeira surpresa: a Praça Babilônia. Inaugurada nos anos 1980 com dinheiro arrecadado em festas juninas realizadas pelos próprios moradores, a Praça Babilônia se situa no entroncamento das ruas Dulce e General Marcelino. Bem conservada, cumpre a missão de ser o ponto de encontro para a diversão de toda a molecada que reside na vizinhança. Mas, há quem também aproveite os bancos para tomar um pouco de sol, com vista indevassável para a Pedra da Babilônia, “xará” da praça.

Rua General Marcelino, esquina de Dulce.

Muros baixos caracterizam a Rua Dulce

Uma amostra do estilo dos imóveis à Rua Professor Lafayette Côrtes 

Rua General Marcelino: um belíssimo edifício com detalhes em verde-chá.

A Rua Dulce é sem saída e combina tanto edifícios de três a quatro pavimentos como algumas poucas casas no lado par da via. Placas e adesivos de “vende” e “aluga-se” fixados às janelas são bastante recorrentes na Rua Dulce, enquanto na Rua General Marcelino a disputa por um imóvel parece ser mais concorrida. Há quem diga na vizinhança que os apartamentos por ali, principalmente na Rua Professor Lafayette Côrtes, chegam a pertencer a uma mesma família por gerações. O clima de tranquilidade que impera no local associado ao estilo antiguinho e aburguesado das edificações pode aparentemente ser um fator de permanência. Mesmo com a violência – assaltos e ações criminosas certamente não devem passar longe desse oásis –, ruas como estas continuam valorizadas na Tijuca e em toda a cidade do Rio de Janeiro.

RESIDÊNCIAS TOMBADAS E O EDIFÍCIO CIBRASIL

É de pouco conhecimento público, mesmo entre os tijucanos mais fervorosos, que no encontro da Rua Professor Lafayette Côrtes com a Rua General Marcelino se situa uma das mais joias raras arquitetônicas desta cidade: O Edifício Cibrasil, localizado no número 156 daquela. Apelidado de “Castelinho”, é um daqueles prédios de deixar qualquer um babando pela beleza, garbo e imponência. A fusão entre um estilo neoclássico e outro eclético impresso à edificação remete aos anos de 1940, mas segundo dados do livro "Tijuca, de rua em rua" (Editora Rio, 2004), ele só foi finalizado mesmo na década de 1950. Foi, portanto, um dos primeiros prédios da Rua General Marcelino, aberta por decreto de 11 de setembro de 1947 quando ainda era um imenso matagal.

Os "bigodes bem penteados" do Edifício Cibrasil, vulgo Castelinho

O Edifício Cibrasil dispensaria descrições se não fosse a missão de O PASSEADOR TIJUCANO apresentar e reapresentá-lo a todo o público leitor deste blog que se interessa pela Tijuca, sua história e evolução urbana. Neste sentido, é interessante destacar que não apenas o Edifício Cibrasil – vulgo “Castelinho” –, mas todos os outros edifícios existentes nessas ruas representam um marco importante da evolução social da Tijuca. O estilo aburguesado dos imóveis, tal como qualifiquei algumas linhas acima, alude a um período de transição lenta e gradual em que a Tijuca vinha modificando seu perfil social mais dominante.

O intervalo que vai de 1930-1950 é bastante característico da fase em que a Tijuca consolida sua imagem vinculada ao imaginário de uma classe média abastada para um bairro fora da orla. O capital simbólico dos tempos aristocráticos, entretanto, se perpetuou nos hábitos e nos padrões de moradia dessa então novata classe social, que procurava reeditar um estilo de vida inspirado na Tijuca “chique” dos tempos da nobreza imperial. E o Edifício Cibrasil é uma prova, no presente, de como estes gostos foram moldados e materializados na arquitetura dali. Segundo informação de uma moradora do prédio, o edifício foi levantado por um próspero construtor para moradia própria, revendendo os outros apartamentos como retorno do investimento. Na Rua General Marcelino, foram erguidos outros dois edifícios pelo mesmo dono e nomeados de Cibrasil II (49) e Cibrasil III (61). Contudo, não são tão bonitos quanto o original.

Os azulejos em sintonia com arabescos: toque lusitano à Tijuca (2013).

O hall de entrada do Edifício Cibrasil: detalhe do corrimão.

É difícil não se embasbacar com a beleza do Cibrasil. A entrada é ornamentada por um portão elegante, de ferro, com detalhes dourados que lembram o formato de bigodes bem penteados. Essa parte da entrada se assemelha a uma torre, com arabescos na fachada sobre o portão, além de um vitral que se estende até o seu topo. Os espaços dentro dos arabescos são preenchidos por azulejos floridos, dando um aspecto bem lusitano ao conjunto. Para completar, lá em cima, no telhado circular, resplandece um galo moldado em chapa de ferro com bico apontado para o céu, como se estivesse cantando ao amanhecer.

Tanto por dentro como por fora, predominam tons de um matiz acinzentado, meio pálido, que atenuam o impacto visual das pequenas descaracterizações aplicadas à fachada – como, por exemplo, a colocação de grades e aparelhos de ar condicionado. Fazendo jus ao charme que lhe é indiscutivelmente peculiar, o sóbrio hall de entrada do Cibrasil possui um quadro estampando uma fotografia do prédio e escadas cujo corrimão é todo trabalhado em formas que remetem aos próprios arabescos da fachada.

O Edifício Cibrasil é preservado graças ao decreto de número 12.864, de 29 de abril de 1994, que instituiu a região como Área de Proteção do Ambiente Cultural (APAC) do entorno do Colégio Militar. Esse decreto também tombou a Pedra da Babilônia e preservou alguns outros imóveis, protegendo o ambiente urbano tanto dali como de ruas situadas no outro "lado" da Pedra, a exemplo das ruas Pareto e Deputado Soares Filho.

Panorama da Rua Professor Lafayette Côrtes 

Rua Professor Lafayette Côrtes 89: preservado pelo decreto da APAC do Colégio Militar.

Pedra da Babilônia e a Rua General Marcelino

Rua Professor Lafayette Côrtes (2011)

Rua General Marcelino (2011)


Imóveis preservados pelo Decreto número 12.864, de 29 de abril de 1994:

Rua Dulce
Lado ímpar: 175, 191, 207, 225, 243
Lado par: 40, 70, 128, 138

Rua Professor Lafayette Côrtes
Lado ímpar: 89, 105, 127, 155, 181, 241, 271
Lado par: 34, 46, 58, 70, 84, 98, 100, 120, 134, 156


RELATOS DE MORADORES: A MEMÓRIA AFETIVA DE QUEM VIVEU O ESPAÇO

Esta não é a primeira vez que escrevo sobre este conjunto de ruas na Tijuca. A primeira vez foi em 2011, quando ainda publicava textos no blog AS RUAS DO RIO, que, mesmo inativo, ainda está disponível para leitura no website da revista Veja Rio. Na segunda ocasião, já para O PASSEADOR TIJUCANO, comentei sobre o inusitado fato de o Edifício Cibrasil ter sido reproduzido em um croqui no livro “A Alma do Rio”, de Cynthia Howlett, lançado no final de 2013. Nesse ínterim, muitos foram os e-mails e comentários que recebi com depoimentos públicos sobre as memórias da vizinhança. Selecionei alguns deles:

Tive a felicidade de, em 1980, conhecer três rapazes que moravam na Lafayette Côrtes e eu morando em São José dos Campos. Em 1981 fui parar na Tijuca de tanto que eu fui passear nas casas deles e adorava aquele bairro! Eles moravam num prédio, o de número 127, construído pelo avô de um deles, que tem a imagem de Santo Ivo, feita com azulejos portugueses logo na entrada do prédio, que tem quatro andares e não tem elevador. Ai, ai, ai... voltei lá esse ano e a idade pesou dessa vez! (risos). 
Um dos meninos ainda mora lá, com os pais, a esposa e a filha, todos no mesmo apartamento, uma coisa bem peculiar desde aquela época, quando os jovens, mesmo já tendo seu emprego, seu estudo, não saíam da casa dos pais. E mesmo depois de tantos anos, muitos parentes dos meus amigos ainda moram naquele prédio, como o filho de uma amiga, o irmão do outro etc. O apartamento é da família, não foi vendido e foi passado para a geração futura, sem se preocupar em fazer reformas, mudar a "cara" do prédio (aliás, todos estão iguaizinhos desde quando estive lá pela última vez!). 
Não tínhamos problemas com segurança, íamos para as noitadas e voltávamos de madrugada, sem a preocupação de encontrar alguma surpresa pelo caminho ou em casa. Tinha festa junina na rua, onde todos os moradores colaboravam com algum acepipe, tinha quadrilha e até cadeia, além do correio elegante, é claro! Mesmo sendo adolescentes, gostávamos desse convívio com os vizinhos, que conhecíamos todos pelo nome, nos cumprimentávamos na rua. Bom, você sabe que a Tijuca é o único bairro que tem a sua naturalidade, ou seja, o carioca que nasceu na Tijuca não é apenas carioca... ele é tijucano!

Joana Darc de Oliveira, 11 out. 2013 (por e-mail)

Caro Pedro Paulo, 
Morei na Lafayette por mais de três décadas e ainda tenho relação com aquele recôncavo até hoje, pois minha mãe e muitos amigos ainda moram lá. 
Seu pedido, ao mesmo tempo que é fácil, também é difícil de retratar face à enorme quantidade de histórias e das particularidades que vivemos naquele período. Só para você ter uma ideia, éramos mais de 150 jovens convivendo diariamente e de quatro gerações diferentes. Imagine o que não há para se dizer de tudo isso. 
Naquele pedaço tinha campeonato de futebol, de jogo de botão, de futebol totó, festa junina (considerada por muitos a melhor da Tijuca!), jogo de cartas, xadrez, taco, vôlei e o que mais você possa imaginar.
Antonio Jorge Faria, 11 out. 2013 (por e-mail)

Nasci e fui criada na Rua Dulce, onde morei até os 13 anos, quando mudei para MG. Minha família ainda possui o apartamento no fim da rua e todo ano vou visitar. Quando entro no beco da Rua Dulce, meu coração até dispara, muitas lembranças boas. Valeu pela reportagem, inclusive li comentários de amigos da infância tão feliz!!!
Maria Inez Pedrosa Machado, 24 nov. 2015 (seção de comentários – AS RUAS DO RIO)

5 de jun. de 2017

Tijuca: um bairro tamanho família

Matéria publicada em VEJA RIO, há 20 anos, fala sobre os estereótipos atribuídos ao bairro.

Em outubro de 1996, a VEJA RIO, suplemento da revista homônima, publicou matéria de capa dedicada a explorar o perfil socioeconômico da Tijuca em ocasião da abertura do Shopping Iguatemi Rio, no Andaraí, bairro vizinho. A reportagem tinha como objetivo representar o estilo de vida dos tijucanos na ótica dominante da revista, voltada especialmente aos moradores da Zona Sul. Intitulada "Bairro tamanho família", a repórter Flávia Pinho procurou qualificar o tijucano como um personagem ilustre por ganhar acima da média carioca, razão pela qual o Shopping Iguatemi inauguraria em seus domínios uma filial da matriz paulistana, conhecida pela segmentação de mercado direcionada às classes A e B altas. Segundo pesquisa realizada por uma empreendedora que, na época, era proprietária da marca Iguatemi, afirmava-se que na área a cinco minutos de carro do shopping havia 208 000 domicílios cuja renda alcançava 1,6 bilhão de dólares por ano.

No entanto, os elogios dispensados ao capital econômico dos tijucanos seriam contrabalançados pela ironia do texto em recorrer indiretamente aos estereótipos sociais dominantes atribuídos à Tijuca para descrever o estilo de vida daqui. O perfil "família" do bairro, a devoção às festas de debutantes e ao gosto pelas mesas fartas e por sobremesas são narrados pela repórter como partes indissociáveis de um jocoso ethos que não se veria em lugar algum fora da região entre a Praça da Bandeira e o Alto da Boa Vista. Assim, ao dizer que os tijucanos não ligavam para pechas, VEJA RIO endossava a caricatura associada à Tijuca vista como cafona, provinciana, conservadora e careta, mas também procurando promover a grande Tijuca a um status que tentava fazer jus à chegada do novo centro comercial.

Fenômeno carioca da época, a transferência expressiva dos moradores da Tijuca para a Barra da Tijuca é retratada por VEJA RIO com a história da família Mussalem, dona das prósperas Casas Pedro. Após quinze dias residindo em "apartamentão" na Avenida Sernambetiba, orla da Zona Oeste, a família havia decidido regressar para a cobertura dúplex da Tijuca, por uma questão de apego territorial. Já o caso de um analista de sistemas que havia se mudado para o Leblon, mas que não conseguia largar a Tijuca e o Tijuca Tênis Clube, é tratado como algo inusitado. Por fim, a matéria sentencia a ideia já premente no imaginário carioca de que ser tijucano não seria uma condição geográfica, mas um estado de espírito. Em suma, um autêntico texto estilo "morde-assopra".

A matéria na íntegra - em texto - você lê abaixo das imagens.






VEJA RIO, 2 de outubro, 1996

Bairro tamanho família

Apegados à família e às tradições, os tijucanos não ligam para pechas e, ganhando acima da média carioca, são hoje cortejados pelos shoppings


Flávia Pinho, com colaboração de Telma Alvarenga

Digam o que disserem, o tijucano é feliz. E ainda se diz mesmo muita coisa do outro lado do túnel. Que aqueles pouco mais de 175 000 cariocas são cafonas, provincianos, conservadores, caretas. Se houve um tempo em que essas carapuças serviram para esconder um rubor encabulado ou, pior ainda, doídos ressentimentos, isso já passou. Os tijucanos transpiram bairrismo sem remorso. Adoram a vida em família – em nenhuma outra parte da cidade filhos e netos orbitam como satélites nas vizinhanças muito próximas das casas de patriarcas e matriarcas. Dão importância para festinhas de 15 anos, para a lasanha do La Mole, para a eleição da Garota AGT, o corpinho mais trabalhado da academia de ginástica do Tijuca Tênis Clube, venerada instituição em que legiões deles preferem tostar a pele às margens da piscina do que na lonjura das praias. É assim que vêm atravessando o tempo, aferrados ao lugar e a valores tradicionais. Se carioquismo fosse estatística, eles seriam a mediana entre a fervura a Zona Sul e o mundão do subúrbio. “A Tijuca nunca foi moda”, define o administrador de imóveis Mário Henrique Rodrigues, 36 anos, titular do Xavier, o time de peladas que leva o nome da Praça Xavier de Brito, um lugar onde até hoje há crianças pilotando pacatos pangarés ou charretes puxadas por bodes.

Mesmo imunes a modismos, os tijucanos nunca foram tão cortejados como agora. Alguns números explicam o fenômeno. A renda familiar do bairro gira em torno de 12,4 salários-mínimos (quase 1 400 reais), contra a média de oito salários-mínimos da cidade. Há mais gente com curso superior por lá do que em Copacabana. É, por exemplo, a maior concentração de dentistas do Rio – dos 10 487, 1 821 estão nas redondezas da Praça Saens Peña. O número de telefones celulares per capita bate o da Zona Sul. Dos bairros residenciais é o que tem mais agências bancárias e o que mais paga ICMS, sintoma de poder de fogo de consumidores vistos como gastadores discretos e pontuais. Atrás de tanta afluência, abre as portas nesta segunda-feira o Shopping Iguatemi Rio, que com 228 lojas vai ocupar o terreno que já serviu de campo de futebol para o América, segundo clube de coração de muitos cariocas e primeiro de uma sofrida e teimosa minoria. Os responsáveis pelo investimento de 100 milhões de dólares coroam a Tijuca com superlativos de um paraíso do consumo. Pesquisa feita pela LaFonte, empreendedora que é dona da marca Iguatemi com sede em São Paulo, diz que na área a cinco minutos de carro do shopping (um raio de 1,8 quilômetro) há 208 000 domicílios cuja renda alcança 1,6 bilhão de dólares por ano. Da dinheirama que essa gente não gasta no varejo local, o Iguatemi espera abocanhar 157 milhões de dólares, fortuna que faria a felicidade de uns dez ganhadores solitários daquelas Senas acumuladas. “Temos a expectativa de receber 40 000 pessoas por dia e, pelo menos, 60% delas virão aqui a pé”, não faz por menos José Antônio Grabowski, diretor da área imobiliária do Banco Icatu, outro sócio da empreitada.

Os preconceitos sobrevivem na orla. Por ali, todo mundo, inclusive o shopping, gosta de se ver como tijucano. Explica-se: o Iguatemi na verdade fica no Andaraí, num vértice entre a Tijuca e a Vila Isabel. Mas Andaraí, Aldeia Campista e outras simpáticas adjacências se sentem anexadas à grande Tijuca. A grande Tijuca, é bem verdade, já foi muito maior. Via como dela a brisa fresca do Alto da Boa Vista e todo o marzão da Barra, que levava (e ainda leva) a marca do batismo no sobrenome. Barra, eis aí um sonho de consumo que ainda sobrevive. Said Mussalem, 50 anos, dono da matriz e das cinco filiais da Casa Pedro, loja que vende especiarias da culinária árabe, acreditou nele por quinze dias. Comerciante próspero, há dois anos mudou-se com a mulher, Solange, e os filhos Felipe, 20 anos, Karine, 18, e Diogo, 12, para um apartamentão de quatro quartos, de frente para o mar da Barra. “A namorada do Felipe mora aqui perto, ele e a Karine estudam na Uerj e não quiseram ficar tão longe”, justifica a rápida desilusão Solange, a única que até hoje não se conforma com o fracasso da mudança. “Foi por causa do trânsito”, emenda Said, que em duas semanas estava de volta para a cobertura dúplex da Tijuca com mulher, filhos e o cachorro “Pitoco”. Sem arrependimento. “Tenho amigos aqui”. O que afugentou a família Mussalem continua lá. O trânsito é horrível e o bairro está infestado de camelôs e de hordas de bandidos e pivetes que pontuam o cotidiano com violência.

Na televisão gigante de 52 polegadas, Said e família gostam de rever a crônica tipicamente tijucana da qual orgulhosamente fazem parte. Congelam a imagem de Karine, vestida como uma fada flutuando na nuvem de gelo-seco do cenário de sua festa de 15 anos, em 1993, um acontecimento para os 500 convidados no Clube Sírio e Libanês. Said tinha para gastar. Gilberto e Wilma de Sousa não. A festa de 15 anos da filha Fernanda consumiu todas as energias e economias do casal. O roteiro começou às 8 e meia da noite do último sábado, 28. Os Sousa espremeram 300 pessoas na pequena capela de Bom Jesus do Calvário, na Conde de Bonfim. Depois veio a festança na Associação Atlética Banco do Brasil, AABB, onde Fernanda desembarcou com um vestido cor de vinho, combinando com a decoração das mesas. À meia-noite, fez uma entrada triunfal com um longo branco, dançou a valsa com o pai e arriscou uma coreografia com seu “príncipe”, Hugo, que namora há um mês. Entre uma coisa e outra, o analista de sistemas Gilberto brindou os convidados da festa dedilhando ao violão a canção O Caderno, de Chico Buarque. O aluguel da igreja ficou em 700 reais, o vestido vinho custou 300, o longo, mais 700. Somem-se a isso os presentinhos especiais – flores para avós e tias, canetas gravadas para os jovens, anéis de ouro para a irmã e a prima. Ainda faltam a decoração, os fotógrafos... “Acho que gastamos uns 10 000 reais”, faz as contas Wilma, que é instrumentadora cirúrgica. “Um dinheirão, e acho um absurdo”. Mas era o maior desejo de Fernanda. E pronto.

Os ritos de passagem são apenas mais um traço da coesão familiar tijucana. Homero Icaza Sanchez, que já não é mais bruxo em tempo integral de pesquisas de audiência da Rede Globo, educou o ouvido escutando aspirações do telespectador de novelas. Brasileiros em geral, cariocas em particular, tijucanos nas menores minúcias. Conhece bem a alma dessa gente que colonizou o bairro com grandes casarões, mais tarde trocados na vertigem imobiliária por apartamentos para eles e seus descendentes. “O resultado é que todo mundo mora perto, às vezes no mesmo prédio”, diz Kátia Varela Mello, 29 anos, defensora pública, não consegue cortar o cordão umbilical. “Como eu poderia ficar longe da minha família? ” E da Praça Xavier de Brito, aonde costuma levar os filhos Eduardo, 4 anos, e Felipe, 1. É só um pequeno exemplo dos clãs tijucanos. Em torno de Raymundo Silvino Pereira, 85 anos, e de sua mulher, Helena, 73, gravita uma farta e barulhenta prole de sete filhos e doze netos. Com exceção de uma filha, que migrou para a Barra, todos moram perto do casarão de dois andares da Avenida Maracanã, onde o casal vive há 28 anos, desde que deixou uma enorme chácara na Rua Antônio Basílio. Raymundo chegou de Pernambuco em 1929 e foi direto para a Tijuca, onde conheceu Helena. Os dois se casaram no dia em que a II Guerra Mundial acabou (8 de maio de 1945), numa cerimônia celebrada pelo então padre Helder Câmara, o que é apenas um dos atestados de longevidade do casamento. Há outros. A mãe de Helena, Julieta Contardo, tem 107 anos e ainda vive com o casal. “Só podia acontecer comigo, ter uma sogra que passa dos 100”, brinca Raymundo.

Helena criou os filhos levando a criançada com merenda para as sessões de domingo do cinema Olinda. O cinema injetou ambições hollywoodianas no espírito tijucano, teoriza Homero Sanchez, que vê nos emergentes de hoje os tijucanos de ontem. “Os netos da Zona Sul acreditam na tradição; os da Tijuca, no sucesso”, diz. No sucesso acreditam Sérgio Pereira da Silva, 46 anos, sócio há 21 de uma clínica no bairro que mais tem dentistas na cidade. “A Tijuca tem uma classe média com forte poder aquisitivo”, explica a concentração. Mas, para além do sucesso, os tijucanos acreditam em algumas instituições que elegem como o prolongamento de sua casa. Os netos de dona Helena estão entre os 38 000 dependentes de 12 000 sócios do Tijuca Tênis Clube, imensa província de lazer da Conde de Bonfim. Piscinas são três. Há dois ginásios, campos de futebol, quadras de tênis e squash, salões de festa, teatro, além de três andares de academia de ginástica. É entre as frequentadoras da academia que será escolhida, ainda em outubro, a Garota AGT. Antigamente, os desfiles eram de biquíni, mas as garotas se acham muito expostas. Agora se exibem em uniforme de malhação. A lotação dos salões oscila. “Quando vem uma orquestra de peso como a Tupy, recebemos até 800 pessoas”, conta Hildo Magno da Silva, vice-presidente sociocultural do clube. Não há mais títulos de sócio-proprietário disponíveis. Só num mercado paralelo e custam no mínimo 2 000 reais.

O ambiente do Tijuca foi uma das razões para Gilberto Carneiro da Silva, 43 anos, analista de sistemas da Dataprev, fazer um percurso parecido com o de Said Mussalem. Com o fim do primeiro casamento há seis anos (já tinha dois filhos, Gabriela e Gilberto Jr.), mudou-se de lá. Conheceu Tânia, quem teve Gabriel, e foi morar no Leblon. “Fiquei dormindo lá, mas minha vida continuou aqui”. Não resistiu e voltou. Até hoje bate ponto no Tijuca, onde exerce o cargo de vice-presidente de Jogos Recreativos, e na praia em frente do quiosque Viajandão na Barra, a saída para o mar da Tijuca. A mulher, Tânia, já está tão acostumada que se matriculou na ginástica do Tijuca. “Lá no Leblon acham que eu fiquei maluca ou que o Gilberto fez macumba para mim”, diverte-se. Gilberto é um tijucano na alma e no paladar. O filé aberto no Lareira, na Barão de Mesquita, o chope no Roquinha, na General Roca, e os bolinhos do Rei do Bacalhau, na Praça Xavier de Brito, são para ele tentações permanentes. Não vai mais ao La Mole “por causa do tumulto”. Por tumulto entenda-se 3 000 pessoas disputando 660 vagas em 165 mesas aos domingos à caça dos pratos mais pedidos – lasanhas (saem 200, a 6,50 reais cada uma) e medalhões com arroz à piamontesa (150, por 15,95 reais). “O La Mole é parecido com a casa da mama”, diz José Maria Correia Freitas, gerente de serviços da filial da Tijuca na Marquês de Valença.

O La Mole também é a mesa da classe média em outros bairros. Na verdade, a Tijuca tem outras singularidades gustativas. Adora doces, por exemplo. Quem sabe uma vantagem do descompromisso com a forma de quem mora longe da praia. A Lecadô vende por mês 7 000 tortas, quase o dobro das 3 600 vendidas pela rede Chaika em duas lojas na Zona Sul e uma na Barra. São 49 opções, mas pede-se a mais a Spumoni, à base de creme de leite, chantilly e leite de condensado, tudo em três camadas coloridas artificialmente. Por falar nisso, a Sendas Tijuca vende todo mês 5 520 latas de leite condensado, bem mais do que as 4 560 vendidas na filial do supermercado em Botafogo, que é do mesmo tamanho. Goiabada, então... são 480 latas por mês em Botafogo, contra 936 na Tijuca. Talvez por isso as amigas Cláudia Pereira de Paula Muffi, 34 anos, moradora de Vila Isabel, e Maria Cristina Cunha, 37 anos, tijucanas, estejam tão animadas com as perspectivas da loja Dunkin’ Donuts que estão abrindo no novo Shopping Iguatemi. As duas trabalhavam no Banco do Brasil e se candidataram a uma franquia da americana Donuts, que faz rosquinhas recheadas de doce de leite e creme, com cobertura de chocolate, que já regalam paulistas e só agora chegam aqui. “O público para isso aqui é muito bom”, confia Cláudia.

O gosto por doces qualquer um entende. Mas o que leva tanta gente para noites de picanha, música e farra no Rincão Gaúcho? Em seu livro Os Últimos Dias de Paupéria, o poeta e letrista Torquato Neto sentenciou: “O tijucano se diverte olhando”. Pois no Rincão, onde uma foto gigante de Tom Cruise de smoking decora o banheiro feminino, ele se diverte fazendo. Nos fins de semana segue-se ao banho de sangue do churrasco um show de Fabiano Straube de Souza, 20 anos, ou só Fabiano. De sua voz saem canções românticas: “Meu estilo é o mesmo do Fábio e do Maurício”, cita com intimidade Fábio Junior e Mauricio Mattar. Quando a letra é em inglês, apela para uma genuína embromation e fica uma hora animando casais que dancam agarradinhos. Depois é a vez de Célia Cavalcanti, que esquenta o salão com boleros e axé music. E, finalmente, entra em cena o performático Marcelo Negrão, a atração mais esperada da noite. Ele canta Parabéns pra Você para os aniversariantes, apimenta com piadinhas torpedos e bilhetes que fulana manda para fulano, arrancando uivos e gargalhadas. A apoteose é a dança da boquinha da garrafa. O advogado Armando Marinho Filho, 45 anos, e sua mulher, Isabel Valente, 36, vão muito lá. “Há dez anos frequentamos o Rincão em média duas vezes por semana”, conta Armando. Eles fazem o itinerário inverso. Moram no Jardim Botânico, têm dois telefones celulares e cruzam o túnel na direção norte. O que prova que ser tijucano não é uma condição geográfica. É um estado de espírito.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...