5 de jun. de 2017

Tijuca: um bairro tamanho família

Matéria publicada em VEJA RIO, há 20 anos, fala sobre os estereótipos atribuídos ao bairro.

Em outubro de 1996, a VEJA RIO, suplemento da revista homônima, publicou matéria de capa dedicada a explorar o perfil socioeconômico da Tijuca em ocasião da abertura do Shopping Iguatemi Rio, no Andaraí, bairro vizinho. A reportagem tinha como objetivo representar o estilo de vida dos tijucanos na ótica dominante da revista, voltada especialmente aos moradores da Zona Sul. Intitulada "Bairro tamanho família", a repórter Flávia Pinho procurou qualificar o tijucano como um personagem ilustre por ganhar acima da média carioca, razão pela qual o Shopping Iguatemi inauguraria em seus domínios uma filial da matriz paulistana, conhecida pela segmentação de mercado direcionada às classes A e B altas. Segundo pesquisa realizada por uma empreendedora que, na época, era proprietária da marca Iguatemi, afirmava-se que na área a cinco minutos de carro do shopping havia 208 000 domicílios cuja renda alcançava 1,6 bilhão de dólares por ano.

No entanto, os elogios dispensados ao capital econômico dos tijucanos seriam contrabalançados pela ironia do texto em recorrer indiretamente aos estereótipos sociais dominantes atribuídos à Tijuca para descrever o estilo de vida daqui. O perfil "família" do bairro, a devoção às festas de debutantes e ao gosto pelas mesas fartas e por sobremesas são narrados pela repórter como partes indissociáveis de um jocoso ethos que não se veria em lugar algum fora da região entre a Praça da Bandeira e o Alto da Boa Vista. Assim, ao dizer que os tijucanos não ligavam para pechas, VEJA RIO endossava a caricatura associada à Tijuca vista como cafona, provinciana, conservadora e careta, mas também procurando promover a grande Tijuca a um status que tentava fazer jus à chegada do novo centro comercial.

Fenômeno carioca da época, a transferência expressiva dos moradores da Tijuca para a Barra da Tijuca é retratada por VEJA RIO com a história da família Mussalem, dona das prósperas Casas Pedro. Após quinze dias residindo em "apartamentão" na Avenida Sernambetiba, orla da Zona Oeste, a família havia decidido regressar para a cobertura dúplex da Tijuca, por uma questão de apego territorial. Já o caso de um analista de sistemas que havia se mudado para o Leblon, mas que não conseguia largar a Tijuca e o Tijuca Tênis Clube, é tratado como algo inusitado. Por fim, a matéria sentencia a ideia já premente no imaginário carioca de que ser tijucano não seria uma condição geográfica, mas um estado de espírito. Em suma, um autêntico texto estilo "morde-assopra".

A matéria na íntegra - em texto - você lê abaixo das imagens.






VEJA RIO, 2 de outubro, 1996

Bairro tamanho família

Apegados à família e às tradições, os tijucanos não ligam para pechas e, ganhando acima da média carioca, são hoje cortejados pelos shoppings


Flávia Pinho, com colaboração de Telma Alvarenga

Digam o que disserem, o tijucano é feliz. E ainda se diz mesmo muita coisa do outro lado do túnel. Que aqueles pouco mais de 175 000 cariocas são cafonas, provincianos, conservadores, caretas. Se houve um tempo em que essas carapuças serviram para esconder um rubor encabulado ou, pior ainda, doídos ressentimentos, isso já passou. Os tijucanos transpiram bairrismo sem remorso. Adoram a vida em família – em nenhuma outra parte da cidade filhos e netos orbitam como satélites nas vizinhanças muito próximas das casas de patriarcas e matriarcas. Dão importância para festinhas de 15 anos, para a lasanha do La Mole, para a eleição da Garota AGT, o corpinho mais trabalhado da academia de ginástica do Tijuca Tênis Clube, venerada instituição em que legiões deles preferem tostar a pele às margens da piscina do que na lonjura das praias. É assim que vêm atravessando o tempo, aferrados ao lugar e a valores tradicionais. Se carioquismo fosse estatística, eles seriam a mediana entre a fervura a Zona Sul e o mundão do subúrbio. “A Tijuca nunca foi moda”, define o administrador de imóveis Mário Henrique Rodrigues, 36 anos, titular do Xavier, o time de peladas que leva o nome da Praça Xavier de Brito, um lugar onde até hoje há crianças pilotando pacatos pangarés ou charretes puxadas por bodes.

Mesmo imunes a modismos, os tijucanos nunca foram tão cortejados como agora. Alguns números explicam o fenômeno. A renda familiar do bairro gira em torno de 12,4 salários-mínimos (quase 1 400 reais), contra a média de oito salários-mínimos da cidade. Há mais gente com curso superior por lá do que em Copacabana. É, por exemplo, a maior concentração de dentistas do Rio – dos 10 487, 1 821 estão nas redondezas da Praça Saens Peña. O número de telefones celulares per capita bate o da Zona Sul. Dos bairros residenciais é o que tem mais agências bancárias e o que mais paga ICMS, sintoma de poder de fogo de consumidores vistos como gastadores discretos e pontuais. Atrás de tanta afluência, abre as portas nesta segunda-feira o Shopping Iguatemi Rio, que com 228 lojas vai ocupar o terreno que já serviu de campo de futebol para o América, segundo clube de coração de muitos cariocas e primeiro de uma sofrida e teimosa minoria. Os responsáveis pelo investimento de 100 milhões de dólares coroam a Tijuca com superlativos de um paraíso do consumo. Pesquisa feita pela LaFonte, empreendedora que é dona da marca Iguatemi com sede em São Paulo, diz que na área a cinco minutos de carro do shopping (um raio de 1,8 quilômetro) há 208 000 domicílios cuja renda alcança 1,6 bilhão de dólares por ano. Da dinheirama que essa gente não gasta no varejo local, o Iguatemi espera abocanhar 157 milhões de dólares, fortuna que faria a felicidade de uns dez ganhadores solitários daquelas Senas acumuladas. “Temos a expectativa de receber 40 000 pessoas por dia e, pelo menos, 60% delas virão aqui a pé”, não faz por menos José Antônio Grabowski, diretor da área imobiliária do Banco Icatu, outro sócio da empreitada.

Os preconceitos sobrevivem na orla. Por ali, todo mundo, inclusive o shopping, gosta de se ver como tijucano. Explica-se: o Iguatemi na verdade fica no Andaraí, num vértice entre a Tijuca e a Vila Isabel. Mas Andaraí, Aldeia Campista e outras simpáticas adjacências se sentem anexadas à grande Tijuca. A grande Tijuca, é bem verdade, já foi muito maior. Via como dela a brisa fresca do Alto da Boa Vista e todo o marzão da Barra, que levava (e ainda leva) a marca do batismo no sobrenome. Barra, eis aí um sonho de consumo que ainda sobrevive. Said Mussalem, 50 anos, dono da matriz e das cinco filiais da Casa Pedro, loja que vende especiarias da culinária árabe, acreditou nele por quinze dias. Comerciante próspero, há dois anos mudou-se com a mulher, Solange, e os filhos Felipe, 20 anos, Karine, 18, e Diogo, 12, para um apartamentão de quatro quartos, de frente para o mar da Barra. “A namorada do Felipe mora aqui perto, ele e a Karine estudam na Uerj e não quiseram ficar tão longe”, justifica a rápida desilusão Solange, a única que até hoje não se conforma com o fracasso da mudança. “Foi por causa do trânsito”, emenda Said, que em duas semanas estava de volta para a cobertura dúplex da Tijuca com mulher, filhos e o cachorro “Pitoco”. Sem arrependimento. “Tenho amigos aqui”. O que afugentou a família Mussalem continua lá. O trânsito é horrível e o bairro está infestado de camelôs e de hordas de bandidos e pivetes que pontuam o cotidiano com violência.

Na televisão gigante de 52 polegadas, Said e família gostam de rever a crônica tipicamente tijucana da qual orgulhosamente fazem parte. Congelam a imagem de Karine, vestida como uma fada flutuando na nuvem de gelo-seco do cenário de sua festa de 15 anos, em 1993, um acontecimento para os 500 convidados no Clube Sírio e Libanês. Said tinha para gastar. Gilberto e Wilma de Sousa não. A festa de 15 anos da filha Fernanda consumiu todas as energias e economias do casal. O roteiro começou às 8 e meia da noite do último sábado, 28. Os Sousa espremeram 300 pessoas na pequena capela de Bom Jesus do Calvário, na Conde de Bonfim. Depois veio a festança na Associação Atlética Banco do Brasil, AABB, onde Fernanda desembarcou com um vestido cor de vinho, combinando com a decoração das mesas. À meia-noite, fez uma entrada triunfal com um longo branco, dançou a valsa com o pai e arriscou uma coreografia com seu “príncipe”, Hugo, que namora há um mês. Entre uma coisa e outra, o analista de sistemas Gilberto brindou os convidados da festa dedilhando ao violão a canção O Caderno, de Chico Buarque. O aluguel da igreja ficou em 700 reais, o vestido vinho custou 300, o longo, mais 700. Somem-se a isso os presentinhos especiais – flores para avós e tias, canetas gravadas para os jovens, anéis de ouro para a irmã e a prima. Ainda faltam a decoração, os fotógrafos... “Acho que gastamos uns 10 000 reais”, faz as contas Wilma, que é instrumentadora cirúrgica. “Um dinheirão, e acho um absurdo”. Mas era o maior desejo de Fernanda. E pronto.

Os ritos de passagem são apenas mais um traço da coesão familiar tijucana. Homero Icaza Sanchez, que já não é mais bruxo em tempo integral de pesquisas de audiência da Rede Globo, educou o ouvido escutando aspirações do telespectador de novelas. Brasileiros em geral, cariocas em particular, tijucanos nas menores minúcias. Conhece bem a alma dessa gente que colonizou o bairro com grandes casarões, mais tarde trocados na vertigem imobiliária por apartamentos para eles e seus descendentes. “O resultado é que todo mundo mora perto, às vezes no mesmo prédio”, diz Kátia Varela Mello, 29 anos, defensora pública, não consegue cortar o cordão umbilical. “Como eu poderia ficar longe da minha família? ” E da Praça Xavier de Brito, aonde costuma levar os filhos Eduardo, 4 anos, e Felipe, 1. É só um pequeno exemplo dos clãs tijucanos. Em torno de Raymundo Silvino Pereira, 85 anos, e de sua mulher, Helena, 73, gravita uma farta e barulhenta prole de sete filhos e doze netos. Com exceção de uma filha, que migrou para a Barra, todos moram perto do casarão de dois andares da Avenida Maracanã, onde o casal vive há 28 anos, desde que deixou uma enorme chácara na Rua Antônio Basílio. Raymundo chegou de Pernambuco em 1929 e foi direto para a Tijuca, onde conheceu Helena. Os dois se casaram no dia em que a II Guerra Mundial acabou (8 de maio de 1945), numa cerimônia celebrada pelo então padre Helder Câmara, o que é apenas um dos atestados de longevidade do casamento. Há outros. A mãe de Helena, Julieta Contardo, tem 107 anos e ainda vive com o casal. “Só podia acontecer comigo, ter uma sogra que passa dos 100”, brinca Raymundo.

Helena criou os filhos levando a criançada com merenda para as sessões de domingo do cinema Olinda. O cinema injetou ambições hollywoodianas no espírito tijucano, teoriza Homero Sanchez, que vê nos emergentes de hoje os tijucanos de ontem. “Os netos da Zona Sul acreditam na tradição; os da Tijuca, no sucesso”, diz. No sucesso acreditam Sérgio Pereira da Silva, 46 anos, sócio há 21 de uma clínica no bairro que mais tem dentistas na cidade. “A Tijuca tem uma classe média com forte poder aquisitivo”, explica a concentração. Mas, para além do sucesso, os tijucanos acreditam em algumas instituições que elegem como o prolongamento de sua casa. Os netos de dona Helena estão entre os 38 000 dependentes de 12 000 sócios do Tijuca Tênis Clube, imensa província de lazer da Conde de Bonfim. Piscinas são três. Há dois ginásios, campos de futebol, quadras de tênis e squash, salões de festa, teatro, além de três andares de academia de ginástica. É entre as frequentadoras da academia que será escolhida, ainda em outubro, a Garota AGT. Antigamente, os desfiles eram de biquíni, mas as garotas se acham muito expostas. Agora se exibem em uniforme de malhação. A lotação dos salões oscila. “Quando vem uma orquestra de peso como a Tupy, recebemos até 800 pessoas”, conta Hildo Magno da Silva, vice-presidente sociocultural do clube. Não há mais títulos de sócio-proprietário disponíveis. Só num mercado paralelo e custam no mínimo 2 000 reais.

O ambiente do Tijuca foi uma das razões para Gilberto Carneiro da Silva, 43 anos, analista de sistemas da Dataprev, fazer um percurso parecido com o de Said Mussalem. Com o fim do primeiro casamento há seis anos (já tinha dois filhos, Gabriela e Gilberto Jr.), mudou-se de lá. Conheceu Tânia, quem teve Gabriel, e foi morar no Leblon. “Fiquei dormindo lá, mas minha vida continuou aqui”. Não resistiu e voltou. Até hoje bate ponto no Tijuca, onde exerce o cargo de vice-presidente de Jogos Recreativos, e na praia em frente do quiosque Viajandão na Barra, a saída para o mar da Tijuca. A mulher, Tânia, já está tão acostumada que se matriculou na ginástica do Tijuca. “Lá no Leblon acham que eu fiquei maluca ou que o Gilberto fez macumba para mim”, diverte-se. Gilberto é um tijucano na alma e no paladar. O filé aberto no Lareira, na Barão de Mesquita, o chope no Roquinha, na General Roca, e os bolinhos do Rei do Bacalhau, na Praça Xavier de Brito, são para ele tentações permanentes. Não vai mais ao La Mole “por causa do tumulto”. Por tumulto entenda-se 3 000 pessoas disputando 660 vagas em 165 mesas aos domingos à caça dos pratos mais pedidos – lasanhas (saem 200, a 6,50 reais cada uma) e medalhões com arroz à piamontesa (150, por 15,95 reais). “O La Mole é parecido com a casa da mama”, diz José Maria Correia Freitas, gerente de serviços da filial da Tijuca na Marquês de Valença.

O La Mole também é a mesa da classe média em outros bairros. Na verdade, a Tijuca tem outras singularidades gustativas. Adora doces, por exemplo. Quem sabe uma vantagem do descompromisso com a forma de quem mora longe da praia. A Lecadô vende por mês 7 000 tortas, quase o dobro das 3 600 vendidas pela rede Chaika em duas lojas na Zona Sul e uma na Barra. São 49 opções, mas pede-se a mais a Spumoni, à base de creme de leite, chantilly e leite de condensado, tudo em três camadas coloridas artificialmente. Por falar nisso, a Sendas Tijuca vende todo mês 5 520 latas de leite condensado, bem mais do que as 4 560 vendidas na filial do supermercado em Botafogo, que é do mesmo tamanho. Goiabada, então... são 480 latas por mês em Botafogo, contra 936 na Tijuca. Talvez por isso as amigas Cláudia Pereira de Paula Muffi, 34 anos, moradora de Vila Isabel, e Maria Cristina Cunha, 37 anos, tijucanas, estejam tão animadas com as perspectivas da loja Dunkin’ Donuts que estão abrindo no novo Shopping Iguatemi. As duas trabalhavam no Banco do Brasil e se candidataram a uma franquia da americana Donuts, que faz rosquinhas recheadas de doce de leite e creme, com cobertura de chocolate, que já regalam paulistas e só agora chegam aqui. “O público para isso aqui é muito bom”, confia Cláudia.

O gosto por doces qualquer um entende. Mas o que leva tanta gente para noites de picanha, música e farra no Rincão Gaúcho? Em seu livro Os Últimos Dias de Paupéria, o poeta e letrista Torquato Neto sentenciou: “O tijucano se diverte olhando”. Pois no Rincão, onde uma foto gigante de Tom Cruise de smoking decora o banheiro feminino, ele se diverte fazendo. Nos fins de semana segue-se ao banho de sangue do churrasco um show de Fabiano Straube de Souza, 20 anos, ou só Fabiano. De sua voz saem canções românticas: “Meu estilo é o mesmo do Fábio e do Maurício”, cita com intimidade Fábio Junior e Mauricio Mattar. Quando a letra é em inglês, apela para uma genuína embromation e fica uma hora animando casais que dancam agarradinhos. Depois é a vez de Célia Cavalcanti, que esquenta o salão com boleros e axé music. E, finalmente, entra em cena o performático Marcelo Negrão, a atração mais esperada da noite. Ele canta Parabéns pra Você para os aniversariantes, apimenta com piadinhas torpedos e bilhetes que fulana manda para fulano, arrancando uivos e gargalhadas. A apoteose é a dança da boquinha da garrafa. O advogado Armando Marinho Filho, 45 anos, e sua mulher, Isabel Valente, 36, vão muito lá. “Há dez anos frequentamos o Rincão em média duas vezes por semana”, conta Armando. Eles fazem o itinerário inverso. Moram no Jardim Botânico, têm dois telefones celulares e cruzam o túnel na direção norte. O que prova que ser tijucano não é uma condição geográfica. É um estado de espírito.

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