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Praça Saenz Peña: cinemas de rua em funcionamento conferiram à região a alcunha de "Cinelândia da Tijuca".
Créditos: Ignacio Ferreira (1989). |
Em edição comemorativa pelo aniversário de 256 anos do bairro, o repórter Mauricio Peixoto do caderno “Tijuca”, que saiu nessa última quinta-feira (16 jul. 2015) no Jornal
O Globo, afirmou que os tijucanos gostam de exaltar o passado da região ao relembrarem orgulhosamente “
dos cinemas na Praça Saens Peña, a ‘Cinelândia do subúrbio’”. De imediato, o termo “Cinelândia do subúrbio” chamou a atenção dos mais atentos leitores pelo simples fato de que a Saenz Peña, nos tempos áureos do cinema de rua, sempre foi conhecida apenas como a
"Cinelândia da Tijuca", ou, mais recentemente, como a "Segunda Cinelândia Carioca" (
graças ao livro da ótima Thalita Ferraz), embora nunca como "Cinelândia do subúrbio".
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Matéria do O Globo Tijuca, de 16 jul. 2015 |
A questão é que existe uma ideia equivocada de que toda a Zona Norte carioca seja sinônimo de
subúrbio, senso comum que motivou o repórter de
O Globo a adjetivar a extinta cinelândia do bairro como "suburbana". Eis, então, a "polêmica", porque
a Tijuca não é considerada oficialmente um bairro do subúrbio. E antes de defender esse argumento, é preciso reconhecer de cara que se trata de uma polêmica digna de qualquer tijucano que a defenda ser xingado de separatista, metido, arrogante, elitista etc. pelo restante da Zona Norte. Mas há fundamentos científicos que embasam essa afirmação, sustentados pela própria Prefeitura do Rio de Janeiro.
Grosso modo, todo subúrbio carioca é necessariamente parte da Zona Norte, mas há bairros da Zona Norte que não são tidos como subúrbios – como, por exemplo, Tijuca, Vila Isabel, São Cristóvão, entre outros bairros vizinhos. Por outro lado, esse entendimento, além de específico, também deveria ser visto como ultrapassado. Isso porque,
no dicionário, subúrbio significa “arrabalde ou vizinhança da cidade ou de qualquer povoação”, o “território extramuros da cidade”. Porém, hoje em dia, os bairros “suburbanos” do Rio dispõem de uma conotação muito mais pejorativa e ideológica do que geográfica, já que,
segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) de 2010, o Rio de Janeiro e sua região metropolitana tem grau de urbanização que já alcança valores percentuais na faixa de 99%. Ou seja, não existem mais subúrbios na acepção da palavra: são todos bairros urbanizados e integrados com a cidade.
Para o caso da Tijuca - e retomando um pouco a história urbana carioca -, o apelido inventado pelo repórter, de “Cinelândia do subúrbio”, é inconsistente porque a região nunca chegou a se consolidar propriamente como um subúrbio da cidade dada a sua contiguidade espacial ao Centro do Rio. O processo de urbanização se expandiu rapidamente da região central, a partir do século XIX, para a Tijuca (na época, Engenho Velho), São Cristóvão e Botafogo, conformando, desse modo, uma única mancha urbana desde o início do século XX. Todos esses bairros citados fazem parte do rol dos mais antigos da cidade em relação àqueles de ocupação residencial, melhorias urbanísticas e integração viária na circunvizinhança do Centro.
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As lojas e cinemas da Praça Saens Peña, nos anos 1950 (reprodução de livro). |
O CONCEITO CARIOCA DE SUBÚRBIO
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Subúrbio, no Rio: conceito ideológico |
O livro
“O rapto ideológico da categoria subúrbio” (Editora Apicuri, 2011), do professor de pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Nelson da Nóbrega Fernandes, mostra um apanhado histórico dos antigos subúrbios cariocas a partir do ano de 1858 indicando que, em mapas oficiais da cidade e em outras documentações consultadas, subúrbio, poderia ser tanto o Méier, Madureira e Inhaúma, como os bairros de Copacabana, Ipanema e Gávea, hoje considerados nobres, da Zona Sul. Isto é, se tratavam de regiões adjacentes à zona previamente urbanizada, como o Centro e os bairros ao seu redor citados anteriormente, caracterizando-se, portanto, como regiões suburbanas no sentido literal.
Nos Estados Unidos e na Europa, onde o processo de urbanização das cidades foi pioneiro, o subúrbio, em geral, foi e continua sendo o espaço destinado às elites e classes médias – que para lá se refugiaram contra os aglomerados urbanos insalubres e perigosos da época das indústrias. São lugares bucólicos, ajardinados e de casas confortáveis. Até o início do século XX, essa acepção de subúrbio também se aplicava ao Rio de Janeiro. Segundo Fernandes, o subúrbio era o local de nobreza – não tão
chic como Botafogo ou o Engenho Velho, bairros da aristocracia, como ele próprio sentencia –, mas com serviços voltados a essa classe, que também se dirigiam para lá com fins de descanso.
Segundo o autor, teria sido a partir da reforma urbana do prefeito Pereira Passos, em 1903, quando o conceito de subúrbio ganhou
contornos mais ideológicos e pejorativos no contexto do Rio de Janeiro. Com a implantação de uma nova ordem urbana no Centro da futura metrópole, associada também à expansão do mercado imobiliário para as classes altas à beira-mar, o proletariado do Centro foi “expulso” para os subúrbios, passando a ser vistos como locais estratégicos de escoamento dessa população marginalizada para bem longe do Centro “civilizado”. Para Fernandes, não houve uma política de moralização da classe trabalhadora nesse processo, o que favoreceu a emergência do caráter pejorativo que o termo “subúrbio” emana no cenário carioca. Em outras palavras, o lugar “sem classe”, desvalorizado, de mau gosto.
TIJUCA, UM BAIRRO GENUINAMENTE NOBRE
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O bailado (e vestimenta) dos tijucanos,
por Olavo Bilac, em 1906 |
É com base no conceito carioca de subúrbio como remetente à ideia de locais habitados originalmente por classes socioeconômicas menos privilegiadas onde podemos constatar que a Tijuca e sua região, em termos históricos, geográficos e especialmente ideológicos, não pode ser considerada um subúrbio da cidade, mesmo fazendo parte da Zona Norte, onde se localiza grande parte dos originais subúrbios na atualmente. Primitivamente aristocrática, a Tijuca, nos seus primórdios, foi um bairro bastante valorizado, berço de famílias tradicionais e de uma classe média com bom poder aquisitivo que, mesmo com o êxodo dos anos 1990, continua caracterizando o perfil social da região mesmo nos dias de hoje.
Na obra clássica
“A evolução urbana do Rio de Janeiro” (IPP, 2008), do também geógrafo Mauricio de Almeida Abreu, diz-se que entre 1870 e 1902 só morava fora da área central “quem podia se dar ao luxo” de arcar com os custos dos terrenos da Glória, Botafogo e Tijuca. Abreu cita também o papel dos bondes no desenvolvimento de bairros da Zona Sul e da Zona Norte, ou, em suas palavras, “os ricos bairros de chácaras da zona norte, como Tijuca e Andaraí” (p. 45).
Gilberto Velho, no estudo antropológico
“A utopia urbana” (Editora Zahar, 1989), dos anos 1960, faz uma análise da estrutura social do bairro de Copacabana mostrando que considerável parte dos moradores que se mudaram para lá eram originalmente tijucanos. Em outras palavras, a construção de um bairro voltado para a elite, como foi o caso de Copacabana no início do século passado, favoreceu a migração de elites de outras partes da cidade, como a Tijuca, para esse novo “paraíso” imobiliário, cheio de signos e estilo de vida vistos como superiores.
Em
“A invenção de Copacabana” (Editora Zahar, 2013), de Julia O’Donnell, é comentado que os jornais de bairro que circulavam em Copacabana por volta dos anos 1920 tinham grande articulação com os congêneres que circulavam entre a comunidade tijucana, mais especificamente a do Tijuca Tênis Clube, e a de Icaraí, em Niterói, por concentrarem uma elite com interesses comuns aos da de Copacabana. Nesse mesmo livro, O’Donnell fala que a “invenção de Copacabana” não só como local de residência burguesa, mas também lugar de passeio, sociabilidades e comensalidades, colocou aquele bairro lado a lado com a Tijuca em termos de lazer; segundo ela, a Tijuca era “um dos destinos privilegiados para os piqueniques na capital” nos anos 1920.
Em livro de Cynthia Campos Rangel derivado de sua dissertação de mestrado defendida no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ),
“As Copacabanas no tempo e no espaço” (Observatório das Metrópoles, 2003), a região da Tijuca é categorizada como “Zona Norte nobre” na pesquisa em diferenciação socioespacial e hierarquia urbana da autora:
A Zona Norte nobre inclui os bairros da Tijuca, Vila Isabel, Andaraí, Grajaú, Alto da Boa Vista e Maracanã. Trata-se de uma área tradicional da cidade, onde ainda residem membros das classes superiores de nossa sociedade. Apesar da ausência de praia, importante símbolo de status carioca, os seus moradores e os que para lá pretendem se mudar, provenientes de outros bairros da Zona Norte ou do subúrbio carioca, apresentam um perfil elitizado (p. 57).
Destaca-se, nesse trecho, a diferenciação apontada pela autora entre Zona Norte e subúrbio, pontuando que os dois termos podem constituir noções distintas de localidades geográficas, detalhe que muitos cariocas ignoram, como o repórter de
O Globo.
ZONA NORTE, ZONA SUL, SUBÚRBIO: HIERARQUIAS URBANAS
Para Gilberto Velho, a
“divisão de zona sul, central, norte e suburbana tem forte conteúdo ideológico e subjetivo, formando um mapa social onde as pessoas se definem pelo lugar em que moram” (trecho citado na obra de Nelson Fernandes, p. 38).
Um bom exemplo que ilustra esse mapa social e a adoção cautelosa (senão temerosa) de denominações geográficas sobre os bairros é o caso da Barra da Tijuca. Considerada um subúrbio da cidade na acepção da palavra, no cenário carioca, entretanto, a Barra é vista como uma “periferia de alto
status” por não dispor de feições morfológicas tampouco índices socioeconômicos semelhantes aos bairros tidos como “suburbanos”, como afirma Nelson da Nóbrega Fernandes em sua obra. Além disso, a ideia de "subúrbio", como já foi mostrado, infelizmente carrega um grande teor depreciativo, concepção que seria pouco atraente para os negócios e anúncios do aquecido mercado imobiliário da Barra e Recreio dos Bandeirantes caso estes fossem difundidos cotidianamente como bairros suburbanos pela população e, sobretudo, pelos empresários do ramo.
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O mapa do Rio de Janeiro, da esquerda para a direita: periferia
distante, periferia imediata (subúrbios) e o núcleo. Reprodução: ABREU,
Mauricio. A Evolução Urbana do Rio de Janeiro (IPP, 2008). |
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Áreas de Planejamento do Rio de Janeiro, segundo o Plano Diretor: Tijuca e Vila Isabel pertencem à área
de planejamento 2, junto com bairros da Zona Sul, por afinidades socioeconômicas e perfil semelhante
da ocupação do solo. (Reprodução: Blog Mapa Ambiental) |
Mauricio de Abreu, em
“A evolução urbana do Rio de Janeiro” (IPP, 2008), assinala diversas vezes os limites entre núcleo e periferia incluindo sempre, por todas as questões já levantadas nesta publicação, a região da Tijuca no “centro”, ou seja, dentro do núcleo econômico.
Em livro a ser lançado em agosto de 2015 pelo instituto de ciência e pesquisa Observatório das Metrópoles, da UFRJ, sobre as transformações na ordem urbana do Rio de Janeiro entre 1980 e 2010, vê-se que, em relação à organização social do território, as regiões administrativas da Tijuca e de Vila Isabel são categorizadas como de perfil superior no mercado imobiliário da cidade e que, tal qual Abreu apontou no estudo da evolução urbana do Rio, ambas continuam pertencendo ao núcleo econômico da cidade, conforme dados do último Censo Demográfico.
De uma forma geral, o que todos esses autores indicam é que, muito embora a denominação da cidade por zonas seja uma construção social, existem questões históricas e geográficas que precisam ser levadas em conta na hora de se chamar um lugar ou outro de subúrbio. Por esse motivo que a região da Tijuca não pode ser denominada como suburbana, apesar de, incontáveis vezes, pontuar essa diferenciação – isto é, entre ser Zona Norte ou subúrbio – acabe necessariamente resvalando em questões muito mais de se querer expor uma divisão de classes sociais do que em questões histórico-geográficas do Rio de Janeiro.
Os cientistas sociais utilizam essa diferenciação entre Zona Norte e subúrbio como categorias para se analisar as desigualdades sociais no território, embora existam outros contextos e agentes que podem acabar reproduzindo tais designações geográficas com fins de pormenorização das hierarquias sociais entre os bairros, e, em muitas ocasiões, de maneira pedante. Como atualmente a grande mídia tende a massificar tudo que está para "além" do Túnel Rebouças, há uma tendência de se chamar, eventualmente, a Zona Norte inteira de subúrbio, principalmente porque grande porção do núcleo econômico da cidade está situado à beira-mar, diferentemente da Tijuca, que se trata de um bairro continental.